23 de julho de 2015

A formação do Cânon do Novo Testamento e as implicações para a Igreja



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cânon do novo testamento

Filipe Balieiro
Mestrando em Divindade, Regent College – Vancouver – Canada
Twitter: @f_balieiro
Facebook: Filipe Balieiro
e-mail: balieiro.f@gmail.com
Todos nós sabemos que a bíblia é o livro mais importante do cristianismo, é o livro que regula a fé e a prática de todo cristão. Mas, quando e como a bíblia foi formada? Quem decidiu que esses 27 livros que temos hoje no Novo Testamento seriam os livros oficiais? Tentando responder essas perguntas, discutiremos o fechamento do cânon do Novo Testamento. Alguns anos depois da morte e ressureição de Cristo, as igrejas e os cristãos tinham vários livros que circulavam entre as igrejas e os cristãos sem critério nenhum. Esses livros eram chamados “Escrituras”.i Como não existia nenhuma regra para definir quais livros deveriam circular entre as igrejas, os teólogos discordavam sobre quais livros deveriam circular entre as igrejas. O fato é que a situação ficou insustentável e que em um determinado ponto da historia da igreja foi decidido quais livros iriam compor o novo testamento. Mas, quais foram as influências (internas e externas) que levaram a criação e o fechamento do cânon do Novo Testamento; Que critério foi usado para selecionar esses livros? Quais as implicações do fechamento do cânon para a igreja contemporânea?
Primeiro, até o século III a Igreja era governada pela “Regra de Fé”ii (Regra de Fé era uma regra comum que circulava entre todas as igrejas dos primeiros séculos baseado na tradição e ensinos vindo dos apóstolos e dos Pais da Igreja, importante ressaltar que não existia nenhum documento oficial descrevendo a Regra de Fé), e por mais de duas dúzias de livrosiii (isso mesmo, mais de 24 livros sem contar o cânon do Antigo Testamento) que circulavam livremente entre as igrejas e os cristãos. Adolf Von Hanarck lista alguns motivos e interesses internos da Igreja que ajudaram a pressionar os teólogos da época para o fechamento do cânon. (1) O primeiro motivo de acordo com Hanarck, existia uma pressão interna para que os cristãos reverenciasse os escritos que continham as palavras e ensino de Jesus, sendo assim o que Jesus disse e ensinou começou a ser o núcleo do Novo Testamento.iv (2) O segundo motivo foi o alto interesse na morte e ressurreição de Jesus, o messias. Esse alto interesse na morte e ressurreição se deve porque a Igreja estava buscando uma tradição histórica em Jesus no mesmo nível da tradição histórica do Antigo Testamento.v (3) O terceiro motivo interno foi que a Igreja considerava Jesus como o fim da lei e, portanto, Jesus é aquele que trouxe a nova aliança. Então, para provar que Jesus era o fim da lei e a nova aliança a Igreja precisava de um documento com autoridade para combater os Judeus e os Gnósticos daquele período.vi
Além dos motivos internos, também existiam motivos externos que contribuíram para a formação do cânon do Novo Testamento. Para Bruce M. Metzger os principais motivos externos foram: (1) Gnosticismo. O sincretismo produzido pelo gnosticismo misturando filosofia e religião era um ameaça para o cristianismo da época. Eles eram uma ameaça porque utilizavam partes do escritos da Igreja, produziam livros apocalípticos, Evangelhos paralelos, bem como livros parecidos com o de Atos.vii (2) Segundo motivo externo para Metzger era Marcion e seus perigosos ensinos. Marcion rejeitava o Antigo Testamento fazendo um distinção entre o Supremo Deus bondoso e o inferior Deus da Justiça. Interessante notar que os ensinos de Marcion foi amplamente popularizado no Império Romano no final do século II.viii (3) Montanismo. Seguidores de Montano eram uma outra ameaça para Igreja daquela época. Montanismo era um movimento extravagante e entusiástico do século II que enfatizava o apocalipse e se autoproclamava a religião do Espirito Santo. Ele criaram uma “nova” literatura sagrada afim de quebrar a confiança da literatura apocalíptica daquela época. De acordo com Metzger, em rejeitando o Montanismo a Igreja deu o primeiro passo na direção de adotar um cânon fechado das Escrituras da época.ix (4) A perseguição dos primeiros séculos também contribuiu para a formação do cânon. Segundo Metzger, quando os soldados do Império batiam na porta dos cristãos procurando os livros sagrados afim de queimá-los, os cristãos não sabiam quais livros deveriam entregar para os soldados pois não sabiam quais livros eram sagrados e quais livros não eram sagrados.
Sendo assim, podemos perceber que motivos internos e externos contribuíram para a formação do cânon do Novo Testamento. Porém, ao contrario do pensamento popular, o fechamento do cânon do Novo Testamento não foi um evento especifico na historia da Igreja. O fechamento do cânon do Novo Testamento foi um processo.
Existe hoje uma larga discussão entre os teólogos de como foi esse processo de formação do cânon do Novo Testamento, nesse breve estudo sobre a formação do cânon ficaremos com a posição do Craig D. Allertx, que propõem uma formação em três fases:
Fase 1. Essa fase contempla o inicio do cristianismo (primeiro e segundo século). Nessa fase seria inapropriado dizer que o cânon já estava pronto, mas, por outro lado, também seria inapropriado dizer que não existia nenhuma Escritura além do Antigo Testamento. Na verdade, conforme citado anteriormente, existiam vários livros circulando entre as igrejas e os cristãos. Dentre esses vários livros, alguns eram considerados livros de “primeira classe” (core books). Nessa fase, Evangelhos Apócrifos e outros livros eram considerados livros de “primeira classe. Atos, algumas epistolas e Apocalipse de João eram considerados livros de “segunda classe”. Por fim, livros como o Pastor de Hermas, também conhecido como O Pastor, era considerado “terceira classe”.
Fase 2 Ainda nessa fase (final do século II e século III) não era possível se fazer uma distinção clara entre os livros que compõe o Novo Testamento e os livros que estão fora desse novo cânon. Nesse período, os cristãos pararam de adicionar livros na lista dos livros considerados “primeira classe”; e entre esses livros, começou a se fazer uma distinção entre os livros mais citados e menos citados pelos teólogos daquela época. pararam de crescer. Importante ressaltar que, nessa época alguns livros de segunda classe começaram a serem citados com mais frequências pelos teólogos. E a ultima característica dessa fase é que nesse período o escritos do Novo Testamento, embora ainda não estivesse fechado, começaram a ter o mesmo peso e autoridade que o Antigo Testamento.
Fase 3 Finalmente, no século IV o cânon do Novo Testamento foi considerado fechado. Santo Atanásio, em sua epistola de numero 39, foi o primeiro a apresentar os 27 livros do Novo Testamento. Sendo assim, o cânon do Novo Testamento foi fechado. Embora, provavelmente essa lista de Atanásio não se tornou padrão imediatamente porque ele ainda incluía alguns apócrifos na lista dos livros do Antigo Testamento. Nesse período também, livros como o Pastor de Hermas e a Didaquē foram considerados extremamente úteis para o catecismo.
Assim, embora não seja possível afirmar quando exatamente o cânon foi fechado, podemos ver claramente o processo de formação desde os primeiros anos do cristianismo ate o século IV. Mas a formação do cânon não foi de forma desorganizada e aleatória, teve alguns critérios para se chegar ao que temos hoje. De acordo com Allert, o critério de canonicidade não foi estabelecido no sentindo que, a Igreja tinha nenhuma lista explícita de documentos, e, através dessa lista ela peneirava os documentos. Aqueles que satisfizeram os critérios de canonicidade foram incorporados no Novo Testamento.xi Esse critério de peneira, como muitos imaginam, não foi verdadeiro, e portanto para Allert, o critério foi estabelecido de forma retrospectiva. Os cristãos do século IV fizeram uma retrospectiva afim de entender porque alguns escritos cristãos tinham maior valor do que outros escritos cristãos para os Apóstolos e Pais da Igreja.xii Partindo desse principio de retrospectiva e esquecendo o principio da peneira, Allert apresenta Apostolicidade, Ortodoxia, Catolicidade e ampla disseminaçãoxiii dos escritos cristãos como os principais critérios para o fechamento do cânon do Novo Testamento.
Apostolicidade. Esse critério implica que o livro escrito por algum apóstolo tem autoridade. Porém, devemos lembrar que a reivindicação de autoria de algum livro por algum apostolo começou somente no século II, quando os Pais da Igreja apelavam para a importância e autoridade daqueles livros para combater Gnosticismo e manter uma doutrina pura na Igreja.
Ortodoxia. Esse critério implica que o conteúdo do livro deveria concordar com a fé e os ensinos da Igreja. É possível notar que muitos livros, por exemplo Gálatas e Tessalonicenses, exortam os cristão a permanecerem firmes nas tradições e evitar qualquer ensino contrário ao que eles receberam. Essa tradição era a “Regra de Fé”, já citada anteriormente. Portanto, esse a adoção desse critério significa que o livro deveria estar de acordo com a fé apostólica, ou seja, a “Regra de Fé”.
Catolicidade e Ampla Disseminação. Esse critério implica que os livros deveriam ser bem aceitos pelas diversas igrejas. Para um documento ser usado na igreja ele deveria ser aceito e ter o valor de Escritura pela própria igreja local. Depois de um gradual e amplo reconhecimento, esse documento ganhava um status maior na Igreja. Em outras palavras, esse critério capitalizava os documentos que eram utilizados em prática pelas igrejas.
A formação do cânon do Novo Testamento mudou o rumo da história da Igreja. Os impactos que essa mudança causou na Igreja continuam ecoando até hoje. Diferente interpretações sobre a autoridade da Bíblia ainda perduram nas nossas Igrejas. Mais ainda, somos incapazes de dizer qual dessas interpretações é a correta. Você até pode ter uma posição com relação à posição de autoridade da Bíblia ocupa na Igreja, porém não é possível afirmar qual posição é a mais correta. Joseph T. Lienhard, no seu livro The Bible, The Church, and Authorityxiv, apresenta diversas posições dentro da Igreja sobre a Bíblia e sua autoridade. Primeiro, os extremos. Herbert Braun publicou um artigo em 1960 defendendo que a Bíblia não tem autoridade nenhuma. No outro lado extremo temos Karl Barth, que acreditava que a Bíblia por inteira tem autoridade, e a Bíblia tem mais importância que a Tradição da Igreja. Segundo, Werner Georg Kümmel e Ernest Käsemann, que eram seguidores de Lutero, defendiam a ideia de que partes do Novo Testamento eram mais importante que outras partes da Bíblia. Terceiro, para Hanson, Cullmann e Campenhausen a Bíblia é apenas um fonte literária que contem os fatos primários dos Cristãos do primeiro século. Em outras palavras, eles apelam para o fato histórico invés de apelarem para o princípio teológico. Por fim, Karl Rahner defende a possibilidade de uma conciliação entre a autoridade bíblica e a Tradição da Igreja. Para Rahner, a formação do cânon também foi parte da formação da Igreja, ou seja, Rahner enxerga a Igreja e o cânon incompletos no inicio da história, e somente com o passar dos séculos ambos vão se completando mutuamente e, portanto, ambos são formados juntos ao longo da história.
Em conclusão, a formação do cânon do Novo Testamento foi um processo “natural” que teve influências internas e externas; a data do fechamento do cânon não é clara devido as diversas divergências sobre esse assunto. O processo de formação do cânon aconteceu ao longo dos primeiros séculos e, portanto, não foi um ponto especifico na historia em que a Igreja escolheu os livros que iriam compor o Novo Testamento. Esse processo de definição não foi especifico nem arbitrário, o próprio processo levou a Igreja aos critérios de seleção. Por fim, mesmo após mais de 1600 anos do fechamento do cânon do Novo Testamento, podemos enxergar as implicações e os impactos que essa decisão gerou e ainda gera na Igreja. Podemos perceber visões extremas sobre autoridade da Bíblia e posições intermediárias. Na minha opinião, após essa breve pesquisa, a melhor visão seria aquela que consegue conciliar a autoridade da Igreja e a autoridade da Bíblia. Entretanto, cada uma – Bíblia e Igreja – deve cumprir o seu papel sem suprimir ou sufocar uma à outra. Acredito que esse seja um processo difícil e delicado, talvez seja um processo idealístico, mas acredito numa igualdade de autoridade entre a Igreja e a Bíblia.
i Craig D. Allert, A High View of Scripture? (Grand Rapids: Baker Academy, 2007), 44-47.
ii Joseph T. Lienhard, The Bible, The Church, and The Authority (Collegeville, MN: The Liturgical Press, 1995), 95-100 e Craig D. Allert, A High View of Scripture? (Grand Rapids: Baker Academy, 2007), 121-126.
iii Wayne Grudem, C. John Collins, and Thomas R. Schreiner, Understanding Scripture: An Overview of The Bible’s Origin, Reability, and Meaning (Wheaton: Crossway, 2012)83.
iv Adolf Von Hanarck, The Origin of The New Testament and the Most Important Consequences of The New Creation (London: Williams & Norgate, Ltd, 1925), 7.
v Ibid., 9.
vi Ibid., 12-16.
vii Bruce M. Metzger, The Canon of The New Testament (New York: Oxford University Press, 1987), 75-78.
viii Ibid., 90-91.
ix Ibid., 99-102.
x Allert, 50-58
xi Ibid, 52.
xii Ibid., 52.
xiii Ibid., 53-58.
xiv Lienhard, 90-93.



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